sexta-feira, 15 de agosto de 2008

"Mata-se o corpo, e não a alma."

Em alguns gêneros de jogos, é realmente um pouco difícil desafiar as convenções, pelo menos sem sair com uma experiência muito diferente da original, o que pode desagradar os fãs do gênero.Principalmente quando o gênero em si tem fãs ardorosos dessas convenções rígidas, como é o caso dos RPGs japoneses.Eu não vou explicar qual é a do gênero e nem que convenções são essas, porque além de eu já ter feito isso, esse negócio de ter que ficar explicando e contando historinha do gênero tal e empresa tal é a parte mais chata de fazer uma introdução.Como está aparente, eu não estou muito satisfeito com as minhas introduções, mas pelo menos dessa vez eu não tô apelando pra uma narraçãozinha meia-boca.Hã, o surto de reclamação metalinguística me fez fugir do assunto.Vamos começar isso logo antes que essa esquizofrenia súbita me impeça de continuar.


Vagrant Story foi lançado para o Playstation em 2000 pela Squaresoft, junto com outros títulos de peso, como Chrono Cross e Final Fantasy 9, e apesar de lançado pela fabricante conhecida pelos seus RPGs tradicionais, com inovações cirurgicamente localizadas, ele pode ser considerado tudo, menos convencional.Vagrant Story junta elementos que lembram Diablo, a (hoje esquecida) série Parasite Eve e os roguelikes, de forma a criar um sistema de jogo que pode ser complexo o suficiente para se perder nele.Nesse samba do japonês doido ainda entram puzzles de empurrar caixas, criação de armas e uma história que mistura magia negra, intriga, e referências á tragédias shakespearianas.O jogo se passa dentro do universo de Ivalice, idealizado pelo designer do jogo, Yasumi Matsuno, e que já havia sido explorado antes no complicado Final Fantasy Tactics, também para PSX, e depois com mais destaque em Final Fantasy 12, ambos "designerzados" pelo mesmo sujeito.Seus jogos têm a fama de investir mais na caracterização dos personagens, e em conflitos políticos e religiosos, e Vagrant Story não é exceção.


A trama se foca no personagem Ashley Riot, um Riskbreaker (uma espécie de agente secreto medieval) á serviço dos Cavaleiros Valendianos da Paz, um grupo responsável pela manutenção da lei e ordem em sabe-se lá qual que terra mágica o jogo se passa.No começo do jogo, o sujeito com nome de mulher e penteado esquisito é enviado para capturar Sidney Losstarot, líder do misterioso culto de Müllenkamp, que estaria secretamente envolvido com um influente membro do parlamento, o Duque Bardorba.Após Sidney atacar á casa do tal Duque, supostamente a procura de uma certa "chave", e ser interceptado por Ashley, ele foge para Leá Monde, uma cidade um dia muito próspera, mas agora destruída por constantes terremotos e está infestada de monstros.MAs esse lugar misterioso parece abrigar alguma força sinistra, o que não vai atrair apenas Sidney, como também os Crimson Blades, o braço armado inquisidor da igreja dominante da região de Valendia, e seu líder, Romeo Guildenstern.Se você está confuso com essa profusão de nomes e lugares, não se preocupe, a história do jogo é uma confusão mesmo, e como a ação se passa toda em Leá Monde, não espere que as coisas se esclareçam muito com o desenrolar do jogo.Felizmente, o foco da história do jogo não são os conflitos armados soporíferos de Valendia, e sim os personagens que se arriscaram a entrar em Leá Monde, e o que acontece com eles lá.


Mas mais sobre a história depois.O principal destaque do jogo é mesmo o seu robusto e muitas vezes hermético sistema de batalha.Pra começar, em Vagrant Story, só existe um personagem controlável no jogo todo (o sr. quebrador-de-risco Ashley), e não existem lojas para comprar itens ou lugares para dormir e recuperar energia.Todos os itens e armas são achados em baús, ou ganhos após derrotar um inimigo.Além disso, o sistema de combate pode lembrar um pouco um RPG de ação, mas também não é bem isso.Ao apertar o botão de ataque, se abre em volta do personagem um "grid" circular tridimensional (que é mais ou menos abrangente dependendo do alcance da sua arma), e se um inimigo estiver dentro dele, você pode selecionar que parte do corpo dele atacar.Atacar partes do corpo em específico pode funcionar como uma estratégia, já que acertar diversas vezes as pernas de um inimigo prejudicam sua velocidade, atacar os braços prejudica seu pode de ataque, etc...Mas como é muito mais fácil matar o inimigo de vez ao invés de ficar pensando nisso, este detalhe acaba sendo um elemento meio deslocado.Ao iniciar uma sequência de ataque, o personagem causará dano, e se o jogador apertar um determinado botão na hora que Ashley acertar o inimigo, poderá usar uma de suas Chain Abilities, uma mecânica que lembra um pouco Paper Mario.Mas ao contrário do jogo do carcamano gorducho, apertar o botão pode ter uma série de efeitos diferentes (que conforme o jogador vai enfrentando inimigos, Ashley vai se lembrando de mais desses efeitos), como causar mais dano ou recuperar energia ou mana.Também existem sequências de defesa, chamadas apropriadamente de Defensive Abilities, que oferecem uma série de atenuantes para o ataque do inimigo.Mas o uso indiscriminado dessas Abilities faz o personagem acumular RISK, uma variável que quanto mais alta estiver, mais diminui a eficácia dos ataques.Deixar a arma embainhada, faz o RISK diminuir, mas isso é algo bastante complicado nas batalhas mais intensas.


Outro diferencial de Vagrant Story é que o personagem não ganha níveis ou pontos de experiência, dependendo exclusivamente das suas armas para poder enfrentar inimigos mais poderosos.E é aí que entra um dos aspectos mais complexos de Vagrant Story, o sistema de criação de armas.Apesar de cada arma ter atributos iniciais básicos (como dano físico e dano "mágico"), existe uma série de outras variáveis que também influenciam em sua performance em combate.Cada arma do jogo é composto de duas partes, a lâmina e o punho, além de que algumas armas que permitem o encaixe de jóias que as deixam mais fortes.O dano que as armas causam é divido entre três categorias, Blunt, Edged e Piercing, e cada inimigo é mais ou menos resistente á um tipo de dano.Além disso, conforme se luta com uma arma, ela ganha afinidade com um determinado tipo elemento (Luz, Trevas, Fogo, Água, Terra, Ar e CORAÇÃO!!!!VAI PLANETA!!!!-brincadeirinha-), e uma arma com uma afinidade alta com um elemento vai causar mais dano em um inimigo do elemento oposto (Fogo-Água, Luz-Trevas, e por aí vai)E calma aí, tem mais; ainda existe um tipo de afinidade ganha quando se luta com um tipo de inimigo, como besta, humano ou fantasma, e quanto maior for essa afinidade, mais dano uma arma vai causar nesse tipo de inimigo.Enquanto a lâmina guarda as informações das afinidades elementais e de tipo de inimigo, o punho determina qual vai ser a força do tipo de dano que a arma vai causar (existem punhos com mais força em Edged, e outros com mais força em Blunt, por exemplo).


Forjar armas então é o processo de combinar lâminas e punhos, de modo a obter a arma mais poderosa possível.Ainda é possível combinar lâminas para obter lâminas mais poderosas, mas os materiais devem ser complicados, e todo esse processo só pode ser executado dentro de estruturas conhecidas como Workshops, que são raras de aparecer durante o jogo.O jogador deve-se preocupar ainda com os outros equipamentos, como escudos e armaduras, que também tem suas próprias afinidades, e também podem ser combinadas e equipadas com jóias.E (acredite), tem mais!Ainda há um sistema de magias, aprendidas em itens chamados Grimoires, e que são divididas em 4 classes: Warlock, que são as magias ofensivas, que francamente são muito ruins (mesmo usando magia de fogo contra um inimigo de água, o dano vai ser praticamente o mesmo de usar uma arma oa) e custam muita mana; Enchanter, ques são as magias que afetam as afinidades elementais das armas e armaduras;Sorcerer, que são as magias que afetam o status de Ashley e seus inimigos, além do ambiente á sua volta; e por fim,Shaman, que são as magias de cura, grupo que incluí a magia Heal, que recupera energia, e será usada provavelmente umas 745.652 vezzes durante todo jogo.


OK, prezado leitor, você ainda está aí?Òtimo, porque o sistema de combate de Vagrant Story é mesmo essa barafunda de informações e dados, o que pode (pode não, VAI) complicar a cabeça do jogador incauto.Mas o negócio é que muitas vezes, o jogo não está nem aí pra se você está entendendo ou não, visto que não há um tutorial obrigatório destrinchando as minúcias do processo de forjamento, ou dos efeitos das afinidades (há sim um extenso manual "embutido" no menu do jogo).E este é um jogo que pune duramente o jogador que o jogar "errado" sem se preocupar muito com as combinações de armas e estatísticas dos inimigos.Poucas coisas são mais frustrante que enfrentar um chefe e causar 2 ou 3 de dano a cada pancada, e procurar freneticamente no seu inventário por uma arma e ver que nenhuma presta contra o vilão em questão.Mesmo aqueles que se embrenharem fundo na selva de variáveis, ainda provavelmente encontraram alguns obstáculos, como o fato do sistema de forjar armas ser pouco intuitivo (a falta de um elemento visual torna este processo um mero malabarismo de números), e o jogador poder carregar um número relativamente limitado de itens, o que pode forçar o jogador á abandonar itens possivelmente úteis se não estiver preparado(existem baús de para guardar itens espalhados pelo jogo, mas além de eles serem meio raros, interagir com eles é um suplício, já que envolve saves obrigatórios e uma interface confusa).


E já que é pra reclamar, vamos continuar reclamando.Os grandes desafios ás suas habilidades de quebrador-de-risco e forjador-de-armas no jogo são as batalhas contra chefes, e algumas são realmente de arrancar os cabelos (e o jogo tem também uma das batalhas finais mais estupidamente difíceis que esse nerd masoquista já viu).Mas os corredores de Leá Monde também são habitados por vários tipos de criaturas, que constituem o pão-com-manteiga das rotinas de batalha do jogo.O problema é que, na segunda metade do jogo, a exploração se torna um pouco menos linear, então é necessário explorar mais o mapa, o que é bastante irritante, pois como o sistema de jogo não permite evitar batalhas, muitas vezes o jogador é forçado a lutar com inimigos que podem sim, ser muito fortes, imunes a muitas armas e com magias desmesuradamente apelonas.Outro detalhe bastante irritante é ter que trocar de arma frequentemente para poder causar algum dano nesses inimigos, o que torna a experiência do jogo um tanto truncada.E como esses inimigos são mais fortes do que se imagina, de repente, eles podem acabar mandando o pobre Ashley pra vala, o que além de forçar o jogador a ter que repetir um trecho é profundamente desmoralizante.Por essas e outras, a minha progressão pelo jogo foi repleta de pausas longas, que rendem a Vagrant Story o título de jogo analisado que eu mais demorei pra completar, num total de incríveis 13 meses, ganhando dos antigos recordistas Crimson Skies (8 meses) e Planescape:Torment (11 meses).


Mas eu acabei acabando o jogo, não?Isso quer dizer que há algo de muito satisfátório na experiência.O sistema, é inegavelmente complexo, mas um jogador dedicado, atento, e principalmente, paciente, conseguirá compreendê-lo e dominá-lo, e entender os desafios que o jogo irá propor.Conseguir compor uma arma quase perfeita, e estraçalhar um chefe aparentemente invencível na última jogada é profundamente satisfatório, principalmente quando isso feito entendendo os conceitos do jogo, e não na sorte cega.È lógico então que este não é um jogo indicado praquele pessoal que fica jogando Bejeeweled e Peggle, embora eu não sou um grande fã desses rótulos de "casual" e hardcore".E mesmo com todo essa carga de combate, o jogo ainda apresenta alguns puzzles de empurrar cubos (alguns bastante inteligentes, por sinal) e ocasionais desafios de plataforma para quebrar a rotina dos combates.


Mesmo com todo esse sistema de batalha complexo e elaborado, um detalhe que me chamou a atenção em Vagrant Story foi a sua história surpreedente boa.Ao invés do tradicional "grupo de heróis enfrenta vilãozão do mal", a narrativa aqui se concentra nos personagens, seus conflitos e intenções.O grupo de personagens é reduzido, e além dos já citados, existem outros, como Jan Rosencrantz, um outro Riskbreaker traiçoeiro, com suas próprias razões para estar em Leá Monde; Callo Merlose, a parceira de Ashley que é sequestrada por Sidney no começo do jogo, e exerce um importante papel durante a narrativa; John Hardin, o cúmplice de Sidney, que tem um passado nebuloso; Joshua, o filho mudo do Duque Bardorba; e Samantha, a amada de Romeo Guildenstern.A história é contada através de pequenas cenas que se interpõem durante o jogo (que lembram bastante a série Metal Gear, graças aos ângulos e rodopios cinematográficos da câmera), e que normalmente envolvem um diálogo entre os personagens citados. Não só a estrutura da narrativa, como a própria história, cheia de questionamentos morais e dilemas éticos lembra uma peça clássica de teatro. Além disso, os leitores mais literatos já devem ter sacado que os nomes Rosencrantz e Guildenstern fazem referência á dois personagens secundários da peça Hamlet, de William Shakeaspeare (que é, por falar nisso, um dos melhores, senão o melhor, livro já escrito. Sério.), o que só confirma a intenção da temática do jogo. Os próprios questionamentos de Ashley Riot sobre as suas certezas e lealdades lembram um pouco as dúvidas existenciais do príncipe da Dinamarca.E tudo isso se sustenta graças aos diálogos soberbos do jogo, que são muito superiores á da maioria dos RPGs, e talvez até dos jogos em geral.Mesmo assim, há quem vai achar a história confusa, pois muitos detalhes importantes são apenas indicados; porém, o importante mesmo é a brilhante composição dos personagens, e não no furdunço de magia negra onde estão metidos.


Vagrant Story oferece muitos motivos para jogar de novo (para os jogadores que não se traumatizarem com a primeira jogada), com uma opção de New Game +, que libera novas armas, áreas e materias para serem utilizados, além de uma série de "achievements" que vão desde o simples até o diabolicamente impossível.Aparentemente, muita gente se encantou pelo charme masoquista de Vagrant Story, visto que o jogo foi um sucesso de vendas (no Japão, pelo menos), e também faz parte do seleto grupo de jogos que ganhou quatro notas 10 da revista Famitsu, a mais respeitada publicação sobre jogos da terra do sol nascente (honra que partilha com jogos como Zelda:Ocarina of Time, Soul Calibur, Super Smash Bros. Brawl, e ...Nintendogs).Não faz muito tempo surgiram rumores de um possível remake para o PSP, mas estes rumores ainda esperam uma confirmação.Portanto, para os que se interessam por RPGs, um bom desafio, estatísticas matemáticas ou Shakeaspeare, fica a recomendação para conhecer a História do Errante.Afinal, pode não ser um jogo que vai agradar a todos, mas como dizia aquela música: "Different strokes for different folks".