domingo, 14 de setembro de 2008

Vidas pela Metade

Uma das maiores dificuldades de ser um gamer atrasado com certeza é lidar com o hype, ou em bom português, a expectativa.Jogar um jogo que absolutamente todo mundo já jogou alguns anos depois do seu lançamento, depois de ter lido centenas de artigos proclamando que este ou aquele é o "Best game EVAAAR!", e se desviando habilmente dos spoilers que podem estragar a experiência futura, faz cair uma atmosfera de expectativas sobre ele, que podem ás vezes contaminar a própria opinião de quem joga.Mas, porém, contudo, contanto e todavia, a tarefa de quem analisa um jogo é justamente se isolar das influências e expectativas externas, para ver se consegue exprimir uma opinião decente.O que não vai ser muito fácil, visto o naipe do jogo em questão.


Half-Life 2 foi lançado para PCs no final de 2004 pela Valve , e é a sequência do universalmente aclamado Half-Life (que também é um dos meus jogos favoritos, diga-se de passagem- o analisador tem um pezinho no caldeirão do hype mental em relação ao jogo), e provavelmente é um tipo diferente de jogo do que estamos acostumados a ver aqui no blog; primeiro, ele não foi um fracasso de vendas ou é desconhecido, e segundo, não é nem tão antigo assim.Mas dá pra eu justificar essa última, j que como todo mundo já jogou esse jogo (eu faço questão de ressaltar), está mais do que adequado na classificação de "atrasado".E de qualquer forma, depois de ter terminado um jogo desta magnitude, dificilmente eu deixaria de falar sobre ele.


Half-Life 2 abre com uma das sequências iniciais mais interessantes dos últimos anos; o jogo parte do ponto em que o primeiro parou (caso você não lembre- ou não tenha jogado, que feio!-, no final do primeiro, Gordon Freeman, o herói de ação barbudo e cientista nas horas vagas, havia sido paralisado no tempo e espaço pelo enigmático homem de preto G-Man, após ter destruído um alienígena gigante grotesco), com G-Man acordando o herói do seu "sono" e explicando, através de um monólogo com closes desconfortavelmente próximos, que precisa novamente dos seus serviços.Então, Gordon (e o jogador, com quem este partilha a visão) surge dentro de um trem, aproximando-se de uma estação, e lentamente se dá conta do que aconteceu: o planeta aparentemente se tornou uma distopia soturna, após ser dominado por uma sinistra raça extradimensional mascarada, os Combine, os cidadãos andam todos de cabeça baixa em indistinguíveis uniformes azuis, câmeras flutuante tiram fotos de todos os passantes, e um tiozinho de cabelos brancos, Dr. Wallace Breen, discursa incessantemente sobre como os humanos deveriam aprender a reprimir seus instintos e se sentir gratos aos "benfeitores" Combine em telões onipresentes pela estação.George Orwell ficaria orgulhoso.Mas logo, o jogador vai se reunir com um velho conhecido do primeiro jogo, e após uma impressionante sequência de perseguição, o jogo irá começas de verdade.


Chega a ser desnecessários discutir como a narrativa em Half-Life 2 é bem implementada é criativa; o jogo se vale da visão em primeira pessoa para, assim como o primeiro jogo, criar uma experiência contínua sem intermissões de filminhos ou sequer telas especiais de loading (ainda existem loadings, vale lembrar- e alguns deles são bem demorados).A história se desenrola com as animações dos personagens e situações acontecendo em tempo real, com o jogador podendo acompanhar do jeito que lhe interessa.A interface do jogo também ajuda nisso, pois não é manchada por nenhum ícone além dos sóbrios indicadores de energia, armadura e munição.Está tudo aí para manter o jogo o máximo possível imerso na experiência do jogo.Principalmente porque, depois de que Gordon esculhamba com dois guardas Combines com seu famoso pé-de-cabra e tem acesso á sua primeira arma, o jogo se lembra que é um FPS (first person SHOOTER) e se transforma em uma montanha-russa de ação até o seu final.E essa comparação não está aí só para efeito de hipérbole; Half-Life 2 adota uma postura relativamente minimalista no que diz respeito ao seu design de níveis (não há bifurcações, salas secretas, itens escondidos, sidequests ou finais secretos) e faz miséria com a linearidade.Ao invés de dar a liberdade máxima ao jogador, o que parece ser a principal tendência de design de jogos nos últimos anos (como já vimos aqui), o jogo faz exatamente o oposto: o conduz por um único caminho apenas (e visto que o jogador passa por cenários vastos em muitos momentos, isso evidencia o esforço do povo que faz o design de níveis na Valve), jogando toda a sorte de desafios no seu caminho.Isso poderia ser alvo de críticas dos jogadores mais ranzinzas, mas isso é uma abordagem que permite um controle maior dos criadores do jogo sobre a experiência do jogador.Se por um lado, todos os jogadores vão ter a mesma experiência, ela provavelmente vai ser incrível para todos eles.


Mas essa restrição da liberdade do jogador provavelmente condenaria o jogo se ele, como a maioria dos FPS, se restringisse á tiroteios contra inimigos comandados por uma AI meia boca.Mas Half-Life 2 tal como seu predecessor, esbanja uma variedade de situações criativa de jogo.No primeiro HL, ás vezes era necessário ativar uma máquina para fazer churrasquinho de uma criatura gigante que habitava um poço para poder cruzá-lo, atravessar uma fase num trenzinho, pular de esteira em esteira numa máquina gigante e enfrentar marines num cânion.HL2 além de introduzir dúzias de desafios novos, como fases de combate de esquadrão e fases onde se controla um exército de insetos gigantes, também apresenta novos inimigos (como os soldados Combine,uma variedade venenosa de headcrab, novos tipos de zumbi, e um bizarro helicóptero orgânico), fases de veículos com controle surpreendentemente bom, e os famigerados puzzles de física.Não, Gordon não deve calcular a força de atrito ou a resistência elétrica de algum objeto para prosseguir; ele deve por exemplo, colocar peso numa gangorra improvisada para levantar uma passagem, ou usar barris cheios de ar para levantar uma ponte.Esses puzzles, porém, dificilmente seriam tão intuitivos se o jogo não fizesse uso da poderosa Source Engine.


A Source Engine, que fez a sua estréia nesse jogo (bom, falar a verdade foi no Counter Strike:Source, mas para efeito de simplificar a leitura, vamos esquecer esse fato.), é o que dá o tempero especial á interação com os cenário no jogo;aqui, os objetos e o cenário reagem de forma realística e impressionante, e é possível carregar e tirar de lugar praticamente qualquer coisa no ambiente de jogo.HL2 tinha a missão de demonstrar do que a Source, desenvovida pela Valve, é capaz (mas felizmente não se ateve a ser apenas um showcase tecnológico, ao contrário do que faz a série Unreal Tournament), e a melhor forma de fazer isso foi com a introdução de um aparelhinho que testa todo o poder desta engine: a arma de gravidade.Ao contrário das outras armas do jogo, esse trambolho não funciona com munição, e sim com pedaços do cenário; ela pode capturar objetos, que vão desde pedaços de escombros até os mais mortais barris explosivos, e os arremessar longe (de preferência, em cima dos inimigos).Não apenas usá-la para bagunçar o cenário é extremamente divertido, como também é importante saber utilizá-la para resolver alguns dos puzzles de física e combater os inimigos.Sem contar que, na fase final do jogo, ela ganha um upgrade que torna as coisas ainda mais caóticas (e divertidas).Outro detalhe técnico do jogo que salta á atenção são os impressionantemente realistas movimentos faciais e animações dos personagens, bem como a sincronia labial.Isso se deve ao fato de que pessoas de verdade foram usadas como modelo para os personagens (como parentes dos funcionários da Valve), e não apenas para a captura dos movimentos.


Mas ser competente nos aspectos técnicos é via de regra em todo jogo-blockbuster-mastodonte de sua época.Mas HL2, além disso, também conta com uma direção artística surpreendente e original.Enquanto o primeiro jogo se passava quase todo num grande complexo científico (com um epílogo num planeta alienígena), Half-Life 2 se passa na metrópole City 17, que tem uma inspiração arquitetônica claramente inspirada em cidades do Leste Europeu, apesar do jogo em momento algum dizer qual é a localização geográfica do lugar (e eu não sou o único que acha isso).Mas o jogo também passa por outras locações memoráveis, como o bairro infestado de zumbis Ravenholm (que também é a melhor fase do jogo, um nível assustador que traz referências visuais dos filmes de George Romero, e onde você é auxiliado por um padre biruta que usa All-Star), uma labiríntica prisão, e a torre gigantesca que domina a paisagem de City 17, Citadel, cujo interior com visual de pesadelo tecnológico parece ter saído de uma capa de CD do Pink Floyd.No departamento sonoro, o jogo também traz uma abordagem nova; ao invés de ter músicas de fundo que ficam no loop perpetuamente durante o jogo, as músicas (excelente, por sinal) entram em determinados momentos para acentuar o drama da situação.Enquanto isso, as inspiradas dublagens e os efeitos sonoros são competentes, como seria de esperar.


A mudança temática do jogo em relação ao seu predecessor fez muito bem ao jogo no que diz respeito ao desenvolvimento da trama; enquanto o primeiro jogo tinha um tom subliminar de sátira de humor negro ao suposto caráter milagroso da ciência (o próprio nome do jogo, Half-Life, indica o termo científico sobre o tempo que uma substância leva para se decompor até a metade de sua massa. Ei, estudar Química ás vezes ajuda á escrever análises), o segundo jogo tem um arco temático muita mais ampla, pois lida, principalmente, com o tema da liberdade.Gordon Freeman, durante sua ausência, ganhou um status de figura messiânica, e a sua volta vai acabar por inspirar os cidadãos de City 17 a se erguer contra os seus opressores, opressores esses que não só os privam de suas liberdades, como também as caracterizam como desnecessárias.O nome Freeman (o Homem Livre) aqui ganha uma forte conotação simbólica, o que não deixa de ser irônico, já que, além da própria estrutura do jogo ser sumamente linear, como já foi explicado, há sempre a sensação de que, como no primeiro jogo, cada passo seu na verdade foi orquestrado pelo G-Man (coisa que o final do jogo faz questão de indicar).O protagonista, o jogo parece sugerir, jamais poderá alcançar a total liberdade, pois sempre vai estar sob o controle restritivo de alguém - seja um homenzinho estranho de terno, seja de um sujeito atrás de um mouse e um teclado.


E Gordon Freeman talvez seja o protagonista ideal para esse conflito, justamente pelo jeito de que a sua caracterização na história é feita.Como a narrativa do jogo é contínua, nunca saindo dos olhos do doutor Gordon, e não há sequer um espelho onde possa se enxergar a sua face, não há nada que indique que o ele é realmente aquele sujeito barbudo e de óculos que a embalagem do jogo e as imagens promocionais apontam que é.Mas então, qual é a utilidade da criação desta figura?Bom, além das óbvias dificuldades publicitárias de se promover um jogo eletrônico sem um protagonista de imagem concreta, eu pessoalmente acho que a chave disto está na identificação com o personagem; a escolha da imagem de Gordon como próxima á de uma pessoa comum, um típico "everymen", ao contrário a dos típicos machões bombados que povoam os jogos em primeira pessoa, parece mais adequado para um jogo com um protagonista "invisível", pois cria uma familiaridade e simpatia reais com um sujeito que não dá um pio durante o jogo todo.Por isso, os conflitos enfrentados por ele tornam-se próximos o suficiente do jogador, mas sem aliená-lo transformando que o próprio jogador no personagem em questão.E se o jogo consegue realizar um elo emocional com um sujeito que nem se vê a cara, é claro que ele também consegue com os personagens palpáveis, e em especial, com aqueles que acompanham o jogador durante a aventura, como o robô com alma de cãozinho Dog, Barney Calhoun, seu amigo soldado dos tempos de Black Mesa, e Alyx Vance, com que você acaba passando mais tempo durante a aventura, e sai dela com o personagem mais bem realizado.O jeito como a personagem é construída se revela mais um dos acertos da narrativa, pois é o convívio com ela, suas frases espertas e os olhares trocados que compõe a sua personalidade em pequenas doses, e fazem com que o jogador realmente se importe com ela, não apenas como um atirador extra, e sim como uma companheira.A aposta dos desenvolvedores nessa empatia com a personagem é tanta que é a preocupação com Alyx que se torna o grande gancho do final do jogo.


Final este que é um pouco desapontador, pois, apesar de se dar de uma forma completamente surpreendente, é parecido demais com o do primeiro jogo para o bem da originalidade.Além disso, ele não é conclusivo o suficiente para satisfazer quem gostou da narrativa do jogo (talvez para deixar um gancho para as sequências episódicas de HL2), especialmente porque muitas perguntas -bem, praticamente todas- permanecem sem respostas.O que não deixa de ser um pouco chato, pois algumas sequências de tiroteio durante o jogo, por mais bem realizadas que sejam, podem ser um pouco tediosas depois que você mata o milésimo combine.Se houvesse um equilíbrio melhor entre as seções de história e de ação pura e direta (coisa que foi alcançada de forma mais eficaz nas já citadas sequências episódicas - especialmente no sensacional Episode 2), o jogo poderia ser melhor ainda.Mas o jogo se dispõe atender não só as necessidades dos nerd-artísticos-intelectuais-metidos-á-besta, como também do pessoal do Winguélevi, Gêtêá, e Cóuterstriqui, ou seja, tá lá atrás de ação pura e direta mesmo, sem essas frescuras de historinha.E é esse pessoal que faz a indústria do jogo girar, até porque eles compõem boa parte dos jogadores.E é esse tipo de conservadorismo que enclausura os jogos eletrônicos na ótica simplista com que são visto pelo mundo não-gamer.São os próprios jogadores os responsáveis por essa imagem negativa, "esmaga-botão", porque eles mesmos não realmente acreditam que os jogos podem ser mais do que apenas passatempo.Sério, eu não tenho nada contra ação desenfreada e nem aos jogos citados, mas pessoalmente acho que os jogadores poderiam ser um pouco mais receptivos á jogos um pouco diferentes do normal.

Se todas as minhas análises continuarem terminando nesse tom panfletário-confessional, que vai acabar precisando de análise sou eu.Ai, ai.Mas enfim, Half-Life 2 é um exemplo de jogo eletrônico de qualidade, e certamente merece todos os prêmios que acumulou durante os anos, pois é bem sucedido em todas as áreas, passando pelos aspectos técnicos e design de níveis, até a sua surpreendente coesão temática, que entrelaça todos os aspectos do jogo em torno de uma única idéia, coisa que pouquíssimos jogos se arriscam a fazer (e menos ainda conseguem).Além disso, é um jogo que conseguiu ser bem-sucedido na tarefa monumental de superar seu antecessor, e também deixar sua marca na indústria, já que vários FPS atuais se aproveitam e evoluem o seu jeito diferenciado de contar uma história.E para quem não quer esperar por uma sequência de verdade, pode aproveitar os episódios já lançados, ou esperar pelo vindouro terceiro episódio (que promete trazer as respostas definitivas para os mistérios da saga - mas que certamente não vai).E se você não jogou até agora, jogue.È um dos poucos jogos que eu recomendo á todo mundo.