sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Variedades de Jardim

Uma dos traços mais interessantes no trabalho de qualquer pessoa que se dedica á criar coisas é a capacidade de pegar elementos banais do nosso cotidiano, e transformá-los em coisas viajantes.Inspiração é apenas o processo de retrabalhar a realidade, pode-se assim dizer.E enquanto os jogos cambaleiam desanimadamente na direção do realismo gráfico absoluto, as tentativas de aplicar a conceitos de realidade ao design de jogos (provavelmente feitos para aplacar aqueles chatos que fazem comentários do tipo "mas não dá pra fazer pulo duplo na vida real!", "onde aquele cara guarda todos aqueles itens?", ou "como ele toma tantos tiros e continua vivo?") se provaram falhas, principalmente porque vão contra os princípios básicos da diversão (sem contar o fato crucial de que o mundo real pode ser muito, muito chato, repetitivo e previsível, com suas limitações físicas e interpessoais).Então, a fantasia é essencial para a concepção de um mundo com suas próprias regras.Então, nunca subestime o poder das criaturinhas bonitinhas.


Pikmin foi lançado pela Nintendo no final de 2001, como um dos títulos de lançamento para o Gamecube.O lançamento do novo console pode ter se mostrado como uma oportunidade perfeita para a empresa tentar um título novo (sim, título - porque hoje em dia, as empresas não lançam mais jogos individuais, só as famigeradas "franquias"), com ambientação e idéias novas, além de estreiar a empresa num certo gênero com a qual não tinha lá muita experiência.Por isso, para dar credibilidade á empreitada, quem assinaria o projeto seria o lendário e superlativo designer de jogos Shigeru Miyamoto (de quem não se precisa falar muito, pelos menos não no segundo parágrafo).Alegadamente, a idéia de Pikmin surgiu enquanto Miyamoto san estava ocupado com seu hobby de jardinagem, quando viu formigas trabalhando em conjunto; isso supostamente serviu de lampejo criativo para o surgimento dos Pikmin.Quer você acredite ou não nessas histórias (eu adoraria ver um designer de jogos, quando perguntado qual foi a inspiração para seu último jogo, respondesse na cara dura: "drogas"), é inegável que Pikmin é um jogo com idéias bastante diferentes, e que, apesar de inicialmente parecer bastante confuso, uma vez que o jogador pega o jeito, flui muito bem.


O negócio é que Pikmin é, por incrível que pareça, um jogo de estratégia, em tempo real, e ainda por cima num console.Porém, o seu trunfo é que, tanto esteticamente quanto em termos de fluxo de jogo, ele se parece com tudo menos isso, graças ao cuidado habitual da Nintendo com a personalidade e com os pequenos detalhes do jogo.A narrativa de Pikmin é simples; um viajante espacial, Capitão Olimar (não confundir com Golimar), está indo de volta para seu planeta natal depois de uma longa viagem, quando sua espaçonave é subitamente atingida por um asteróide desgarrado, e acaba caindo num planeta próximo.E para o azar do pobre Olimar (que também é um anagrama para Mario, se você ignorar a letra "L"), o planeta está cheio de um gás venenoso para ele, o oxigênio, e seu suporte de vida só vai durar 30 dias; então, ele tem que dar um jeito de consertar a sua nave, ,e se mandar dali antes que seja tarde.Nessa tarefa, porém, ele terá a ajuda de simpáticas (ainda que um pouco perturbadoras - bom, eu acho) criaturas parte vegetal, parte animal, os Pikmin.Eles confundem Olimar com uma espécie de líder ou deidade, e por isso, começam a seguí-lo para todo lado.


O jogador controla diretamente Olimar, que por suas vez, pode dar ordens aos Pikmins; e entenda-se "dar ordens" como "arremessar os pikmins" em alguma direção e ver eles fazendo alguma coisa.As ações básicas do jogador são essa, e a possibilidade de reconvocar pikmins usando um apito. É possível também desconvocar os pikmins, ação que também os divide em grupos de cores; por fim, é possível direcionar os pikmins em volta de Olimar (o que sempre ativa um efeito sonoro que mais parece a musiquinha do passarinho-quer-dançar), algo utilíssimo para fazer as algo mentalmente limitadas criaturinhas fugirem de inimigos e perigos naturais.Vale lembrar que tudo é feito, e especialmente planejado, para o uso das alavancas analógicas do controle do Gamecube (é possível movimentar Olimar e mirar ao mesmo tempo com uma, e controlar com relativa precisão o posicionamento dos pikmins com a outra), o que demonstra que o jogo foi todo pensado como uma coisa nova, e não como mais um dentro de um gênero firmemente fechado e definido como esse.Tal atitude criativa, infelizmente, está cada vez mais rara hoje em dia, onde tudo é fechadinho e definidinho, causado pela interferência cada vez maior do pessoal encarregado de vender os produtos (porque no final das contas, o jogo - bem como livro, música e filmes, é isso, um produto) do que o pessoal que efetivamente os cria.


Já vi que eu vou divagar muito hoje.Mas enfim.O principal objetivo do jogo é encontrar as 30 peças da nave, que estão espalhadas pelas fases; para isso é necessário comandar os pikmins para carregá-las de volta para sua base, onde estão localizados á sua nave, e as "cebolas", que servem de morada e também de local de surgimento de novos pikmins.Explica-se:para se multiplicar, os seus pikmins precisam carregar objetos para essas cebolas, como imensas pastilhas coloridas (que ecossistema curioso, esse) com números em cima, indicando quantos pikmins são necessários para carregá-la, ou inimigos derrotados.Eles serão absorvidos pela cebola, que em seguida cuspirá no solo sementes de novos pikmins, que mais tarde deverão ser diligentemente arrancados do solo por Olimar.Logicamente, inimigos maiores fornecem mais sementes, mas também precisam de mais força para carregar, e também, pastilhas fornecem mais sementes quando são absorvidas por uma cebola de cor correspondente.Tendo em vista isso, o jogador deve administrar quando pikmins são criados, e quantos são perdidos em combate, pois a quantidade de pikmins que o jogador possui se mantém de um dia para o outro.Isso, em conjunto com o limite de tempo para achar as peças, dá ao jogo uma certa tensão que inicialmente parece inesperada em um jogo tão cheio de criaturinhas bonitinhas.


Os pikmins são divididos em cores primárias; azul, vermelho e amarelo.Os pikmins vermelhos, a primeira espécie encontrada no jogo, são resistentes á fogo, além de serem sutilmente mais fortes em combate; os amarelos podem ser arremessados mais alto que os outros, além de poderem carregar pedras-bomba, necessárias para levar abaixo certos obstáculos e para dar conta de alguns inimigos; e os azuis são os únicos que podem entrar em áreas com água sem se afogar.Cada peça da nave caiu num determinado ponto, que exige uma certa combinação de habilidades de pikmins para ser alcançado; algumas exigem uma estratégia específica para ser alcançada, enquanto outras exigem que o jogador derrote um tipo especial de inimigo.A variedade de desafios é bastante interessante, especialmente considerando que, ás vezes, trazer a peça de volta a base, por um campo cheio de monstros famintos, pode ser um desafio á parte.Essa mecânica de conquista vagarosa do jogo, somado com o fato de que o jogador pode fazer mudanças definitivas no layout de algumas fases ao derrubar portões e muralhas, ou derrotar certos inimigos, dão ao jogo aquela sensação de que há sempre algo á fazer, o que o torna estranhamente (e surpreendentemente) viciante.


Outro elemento do jogo, que talvez não saia tão bem realizado quanto os outros, é o combate, que normalmente consiste em basicamente arremessar pikmins num inimigo até sua barra de energia acabar.E apesar do modo de despachar os inimigos seja sempre o mesmo, dado a variedade de tipos, formas e comportamentos deles, a forma de você proteger sempre muda.Alguns inimigos maiores podem "sacudir" os pikmins de seus corpos, forçando você á reconvocá-los, antes que eles possam os engolir ou esmagar; outros inimigos podem enterrar os pikmins no chão, ou soprá-los para longe, ou envenená-los para voltá-los contra você (Olimar também tem um medidor de energia, e também pode ser atingido pelos ataques dos monstros).Por causa disso, o combate pode ser muitas vezes caótico, por um ataque bem-sucedido de um inimigo pode mandar vários pikmins pro saco de uma só vez, o que faz que você fique correndo, apitando e girando seus pequenos guerreiros o tempo todo.Porém, como o controle das criaturinhas não é exatamente muito dinâmico, já que mecânica de arremessar os pikmins (apenas um de cada vez, vale notar) não é lá muito precisa, e a câmera do jogo também não colabora, alguns dos conflitos (especialmente alguns dos embates contra chefes) podem se tornar exercícios em frustração.Felizmente é sempre possível reiniciar o dia, podendo assim evitar possíveis desastres e traçar a melhor estratégia para obter a peça do dia (como há o mesmo número de peças que de dias disponíveis, é possível prosseguir com uma certa tranquilidade pelo jogo).Porém, reiniciar constantemente a mesma fase rapidamente pode tornar o jogo meio burocrático.


Esse sistema de dias é ao mesmo tempo, bom e ruim para a experiência do jogo; embora estabelecendo um limite de tempo para cada fase (cada dia dura aproximadamente vinte minutos) o jogo força o jogador a abandonar o seu ritmo de exploração, o senso de urgência criado ajuda a planejar melhor as tarefas, e talvez o aproxima mais de jogos de estratégia tradicional.Ao final de cada dia (que sempre termina com uma contagem regressiva dramática), e necessário juntar convocar todos os seus pikmins, ou então, os que sobrarem vão virar jantar dos predadores noturnos.Isso é um pouco chato se considerar que os pikmins são meio tapados, então sempre ficam presos em pedaços do cenário, que se perdem no caminho, ou que ficam pra trás quando você avança muito depressa.È possível contornar alguns desses problemas evoluindo os pikmins através de poças de néctar espalhadas pelas fases. Eles tem três estágios de evolução, determinados por uma folha, um botão, e uma flor em suas cabeças; neste último, eles são mais velozes e mais fortes.Porém, alguns comportamentos - como o hábito dos pikmins de quando dispensados carregarem qualquer coisa que seja carregável, ou atacarem cegamente um inimigo - não podem ser evitados, então, cabe ao jogador aturá-los.Existem também outras falhas, essas mais da natureza do jogo, com a incapacidade de selecionar uma determinada cor de pikmins sem ter que desconvocar todos eles e depois convocar apenas aqueles que você deseja, pode dar complicações desnecessárias ao jogador.


Tais falhas de jogabilidade, porém, parecem ser provenientes do fato do jogo ser relativamente experimental.Creio que a maioria dos jogadores fará concessões ao fato do controle ser um tanto desajeitado, ao adentraram a atmosfera única que o jogo proporciona; a justaposição de criaturinhas cartunescas, coloridas e expressivas, com cenários semi-realistas (há várias referências sutis de que o jogo se passa no nosso planeta) e trilha sonora ambiente, dá ao jogo um certo charme único.O cuidado com detalhe também transparece, por exemplo, nos diários do Capitão Olimar, que aparecem ao final de cada dia.Talvez por isso incomode o fato do jogo ser algo curto; são só cinco fases, sendo que a primeira é mais um tutorial, e a última é mais uma típica fase final de jogo - o grosso do jogo está contido nas três intermediárias.Uma vez que você termine o jogo (não é necessário todas as peças da nave para terminar o jogo, mas como não é informado quais são as peças necessárias ou onde elas estão, a maioria vai tentar pegar todas mesmo), não há muito o que fazer, além de recomeçar, ou tentar o Challenge Mode, que é basicamente jogar as fases de novo, tendo como objetivo gerar o máximo de Pikmins possível.


Dá pra ver Pikmin sucede em muitas áreas, e isso é sempre associado ao já citado envolvimento de Shigeru Miyamoto com o projeto.Porém, apesar da história da jardinagem e tal, não foi ele efetivamente quem comandou o projeto; os diretores foram os senhores Shigefumi Hino e Masamichi Abe (eu sei, também nunca ouvi falar), enquanto Miyamoto-San ficou com o esotérico cargo de produtor.Ao que parece, há uma mania no jornalismo de jogos contemporâneo, amador ou profissional, de atribuir todo o esforço, e por consequência, as glórias de um projeto bem sucedido á uma determinada pessoa (isso quando o citado jornalismo de jogos contemporâneo não está ocupado elencando curiosidades inúteis, fazendo listas, usando de hipérbole invaravelmente escatológica).O negócio é, salvo raras exceções, jogos são essencialmente criações coletivas, com muitas pessoas com muitas talentos trabalhando coletivamente.Tal obsessão em constantemente eleger um herói só serve para atrasar e desinformar o nosso meio, e normalmente, a figura do designer-estrela dificilmente ajuda no desenvolvimento saudável de um projeto(Daikatana ensina isso).Essa adoração sempre acaba atingindo o lado de fora da redoma, ou seja, pessoas normais, o que ajuda ainda mais a sedimentar a aura de gênios intocáveis.


Sinceramente, eu admito que a obra desses sujeitos como Will Wright e o próprio Miyamoto é respeitável; as lições e conceitos presentes em jogos como Super Mario Bros. ou The Legend of Zelda são tão influentes que tais jogos são citados até hoje como objeto de estudos de designers, seja pela sua atenção com detalhes, seja pelas mecânicas de jogo firmemente equilibradas, seja por outros tantos motivos que gente mais gabaritada que eu já cansou de escrever.Mas também acho que é hora não só do panorama "gamerdesignerístico" (eita) crescer para além daqueles que o estabeleceram.O fato dos títulos contemporâneos dos criadores citados (como Spore e o lamentável Wii Music) não terem obtido o sucesso desejado pode ser mais uma prova disso.É perceptível uma certa falta de ousadia , de vontade de se arriscar, embora isso parece ser mais sintomático da situação atual da indústria de jogos - e talvez especialmente da Nintendo - do que de apenas um criador; por isso Miyamoto pode ser especialmente representativo da situação atual do design mainstream de jogos; afinal, você quer coisa mais artisticamente conservadora e sem ousadia que esta atividade?

Mas, tendo dito isso, eu ainda arrancaria um braço para conhecer o Miyamoto.

(Bom, talvez não um braço, mas, como dito, jornalismo de jogos é hipérbole, não é mesmo?)

(Marque um ponto pra hipocrisia)

(Ai, ai)


Mas se você ainda está lendo este texto querendo razões para jogar Pikmin, não vejo nenhuma para não indicar; este é um dos raros títulos que se arrisca a fazer alguma coisa diferente de tudo que já foi feito, e consegue fazer com relativo sucesso.A forma de combinar estratégia com uma movimentação típica de jogos de ação e aventura funcionou muito bem, ao ponto que virou referência para outros jogos, como as séries Overlord e Battalion Wars, esta última da própria Nintendo.Pikmin está disponível também para o Wii sob o rótulo da picaretíssima série New Play Control (assim como Metroid Prime - mas assim como esse, o título foi analisado na sua versão original), que "atualiza" os jogos para o controle com função de ponteiro e reconhecimento de movimento.Enquanto isso, a sequência de fato para o Wii, embora anunciada á algum tempo, ainda não teve muitos detalhes divulgados.Bom, acho que os diretores da empresa estão muito ocupados contado o dinheiro obtido por espremer tudo o que pode das suas franquias (estou começando a detestar esse termo), e de fazer jogos simplezinhos para um público que não conhece nada melhor.E chega de hipérbole, reclamações, divagações e derivados por hoje.