sábado, 24 de maio de 2008

Tormentos e Ressurreições

Se você acompanha o Gamer Atrasado, sabe que eu sou um grande fã do gênero dos RPGs, os vulgos jogos de interpretação de papéis.No mundo dos jogos eletrônicos, esse foi um termo que se perdeu um pouco, visto que na maioria dos jogos desse gênero, o jogador começa controlando um personagem de traços já definidos.Eu não estou dizendo que isto é uma falha (é só um mais jeito de contar um história através do jogo, afinal).Mas vale ressalatr que esse tipo de RPGs, principalmente orientais, não tiraram o espaço dos RPGs mais voltados á tal da interpretação de papel, estes tipicamente ocidentais.Este nicho é principalmente influenciado pelo RPGs de mesa, estes sim genuínos jogos de interpretação de papel (e também, segundo a sempre adorável imprensa nacional, máquinas de produzir assassinos satanistas) onde o jogador monta os atributos do seu personagem, a partir de um sistema de jogo.Esse tipo de abordagem mais livre para o jogo também tem as suas armadilhas (veja a quantidade incrível de “hacks and slashs” e MMORPGs vagabundos que existem nos cantinhos escuros da cultura gamer), e também as suas próprias limitações, principalmente no que diz respeito á temática.Mas por sorte, acaso, ou por interferência do grande titereiro da existência, sempre aparece um jogo para quebrar e depois dançar em cima dos cacos da convenções de algum gênero.Será que alguém está afim de mais uma análise desmedidamente longa e ligeiramente épica?Porque eu estou!


Planescape:Torment foi lançado no final de 1999 pela Black Isle, empresa também responsável por outros clássicos do RPG ocidental, como o cultuado Fallout, e também auxiliou no desenvolvimento do também querido Baldur´s Gate.Aliás, Planescape compartilha a mesma engine de jogo deste último.Porém, isso não é a única que os jogos compartilham, já que ambos utilizam-se do sistema e da ambientação do universo dos RPGs de mesa Dungeons and Dragons.Então, Planescape deve ser uma aventura familiar para esse pessoal que tem dado (de 20 lados) em casa, não?Hã-hã.Embora eu não jogue RPG desde a quarta série, quando eu jogava RPG de Pokémon com moedas de cinco centavos, e então não possa comentar sobre esse ponto de vista, posso dizer que Planescape é um dos jogos menos convencionais que já tive a satisfação de experimentar (e olha que eu já joguei muitos jogos desse tipo).


Pra começar, o jogo se vale da licença do universo Planescape, um dos mais interessante do domínio D&D.Nesse universo, fé é poder;se muitas pessoas acreditam em alguma coisa, ela se torna real.Além disso, este universo é composto de vários planos interligados por portais, ao invés de longos continentes.Esses planos podem ser encarnações físicas de ideais, domínios de criaturas cruéis ou projeções da vontade de um indivíduo, e são acessados através de portais abertos não por chaves e magias, e sim por sentimentos, sensações e lembranças.Boa parte do jogo se passa na cidade de Sigil, a "cidade das portas", que serve de lar para boa parte dos portais interplanares do multiverso.Isso cria um ambiente bem diferente do que normalmente se espera para um jogo de alta fantasia; ao invés de elfos e anões, temos uma variedade de criaturas curiosas, estranhas e assustadoras (todas bem documentadas numa muito útil database que explica quem são todos os seres que você encontra), todas misturadas dentro de um mundo sujo, bizarro, sinistro, grotesco, sórdido, belo, poético e ás vezes patético.Mesmo com a ambientação propícia, os designers fizeram questão de desviar-se habilmente de outros clichês, coisa que se percebe tantos nos pequenos detalhes, como o fato de que não existem espadas para se utilizar no jogo, apenas machados, martelos e adagas, e nos grandes, como no fato do protagonista do jogo ser genuinamente feio (como a equivocada capa do jogo demonstra), cheio de tatuagens e cicatrizes.Ele é um imortal, afinal de contas.


Pois é, seu personagem é imortal.Quando o jogo começa, o tal do Nameless One, como ele vai ser conhecido, acorda, desmemoriado, em cima de mesa de um mortuário, e é rapidamente informado disso pela caveira flutuante Morte, que é também o seu primeiro companheiro de time (e também o principal alívio cômico do jogo, com sua atitude irônica e ligeiramente tarada).Quando a energia do personagem principal se esgota, ele é simplesmente transportado para uma determinada locação, com a energia cheia(e até mesmo os aliados do Tiozinho Sem-Nome se aproveitam disso, visto que o herói ganha bem cedo no jogo o poder de retornar a vida á eles).Esse fato dá uma dinâmica nova para o jogo, já que, como o seu personagem tecnicamente não pode "morrer", os combates, que normalmente são a tônica dos RPGs, para dar lugar os diálogos, exploração e resolução de enigmas.Essa própria mecânica de não poder morrer é usada para resolver um puzzle num calabouço propositadamente letal, durante um momento particularmente inspirado do jogo.Essa característica com ares de maldição vai ser o principal motor da busca do Nameless One.Quem ele é, e porquê não pode morrer?


Quando você começa a explorar as ruas de Sigil, você começa a perceber lentamente que a imortalidade do seu personagem, com suas múltiplas encarnações anteriores, causou diversos impactos na vida de muitos indivíduos, sendo odiado ou insultado por
alguns deles.Durante algumas conversas com os diversos habitantes da cidade, o Nameless One vai se lembrar de alguns dos fatos de suas vidas passadas, e com isso ganhar experiência, habilidades novas e atributos.Mas isso não é tão simples quanto parece, pois existe bastante gente para falar nesse jogo, o que é acentuado pelo fato de que os NPCs genéricos mesmo são relativamente poucos, então existem muitas histórias para ouvir, quests para aceitar, e brigas para arranjar.Eu não vou negar: na maior parte do tempo em Planescape você estará simplesmente lendo texto.Mas esse fato não é definitivamente um demérito na qualidade do jogo, exceto em algumas situações em que o texto é um pouco excessivo e gratuito.Apesar de ser um pouco estranho de início o fato de que alguns eventos são mais descritos em texto do que acontecem na tela, no geral, o texto é de uma qualidade muito superior a da maioria dos jogos (o que por si só já é uma proeza e tanto, já que o jogo tem por volta de 800 mil palavras), cheio de frases inteligentes para encher nicks de MSN e diálogos profundos para mexer com o filósofo presente dentro de você.Há momentos inclusive de sutil brilhantismo, como quando o personagem principal experimenta uma visão arrebatadora encarnando as emoções de sua amada fantasmagórica Deionarra.


Não só nos diálogos, como também na composição dos personagens que o jogo acerta em cheio.Os personagens que se juntam ao seu grupo se juntam não apenas por causas em comum ou outros motivos cabalísticos,como nos demais RPGs, mas porque o Nameless One tem a capacidade único de atrair almas atormentadas como ele (daí o nome do jogo).E todos os personagens, sem exceção, são memoráveis; se juntam ao seu grupo uma bandida invocada dotada de uma cauda, um mago insano permanentemente em chamas, uma sucubbus que fez voto de castidade, um honrado guerreiro com código de honra complexo e uma arma que se metamorfoseia, uma armadura ambulante que na verdade é a encarnação do espírito da justiça, e um ser mecânico que não sabe o que fazer direito com a própria individualidade.Os personagens também contribuem para o desenvolvimento da jornada do herói (ou anti-herói, você também pode ser mau a beça no jogo), já que a sua presença pode influenciar nas decisões ou abrir novas soluções para problemas.Os personagens também trocar frases e farpas entre si enquanto você viajam, e um diálogo com um deles pode gerar acontecimentos surpreendentes, como bônus de atributos e habilidades, e até mesmo um relacionamento mais íntimo...Durante o combate, os personagens também tem habilidades distintas, que fogem um pouco do rígido sistema de regras e classes do D&D.Morte, por exemplo, pode usar a sua "Liturgia de Insultos" para deixar qualquer inimigo irado contra ele, e que esta fica mais forte toda vez que ele escuta novos insultos.


E os eventos que embalam esses personagens também não ficam atrás nos quesitos bizarrice e exotismo.Durante o jogo, você vai:reunir um sujeito com a sua cabeça perdida;fazer o parto de um beco (sim, eu disse beco);viajar para o primeiro nível do inferno;recobrar a habilidade de sonhar;salvar uma cidade de ladrões e traidores de um anjo vingador;visitar o Bordel do Saciamento das Luxúrias Intelectuais;salvar a vida de muitos;matar outros tantos;se aliar á facções com filosofias próprias, e muitas vezes contraditórias;enfrentar três versões diferentes de si mesmo;desvendar um assassinato;ser vítima de uma maldição que te faz soluçar eternamente;atravessar um calabouço criado aleatoriamente por seres que querem aprender por que aventureiros visitam calabouços;ser aprisionado num labirinto aparentemente sem saída pela Senhora da Dor, a "dona" de Sigil;comprar chocolates mágicos de um mago viciado em doces;falar com as cinzas de um lingüista falecido para aprender uma língua morta;e por fim, lutar contra a sua própria mortalidade numa fortaleza localizada no Plano Elemental da Negatividade.


Então a história é boa, correto? Então porque ao invés de se darem ao trabalho de fazer um jogo não escreveram um raio de um livro?Bom, primeiro, houve realmente uma novelização do jogo, mas ela sofreu com diversas diferenças em relação á trama do jogo,o que acabou minando seu possível sucesso(e como novelizações de jogos eletrônicos são mais risíveis até do que filmes de jogos eletrônicos, é melhor desconsiderar).Outra coisa, eu não se se o prezado leitor se lembra, mas, durante a análise de um jogo meio desconhecido há um tempo atrás, eu ponderei se os jogos não poderiam evoluir de mera diversão passageira para um nível de interação artística maior, e único.Posso disser que Planescape pertence á essa categoria distinta que ultrapassa a definição simplista de jogo.Aqui, o jogador está por trás de cada uma das ações do personagem principal, e também no controle de como cada uma delas vai afetar o jogo.Em mais de um momento o jogador se vê diante de uma escolha difícil, do ponto de vista moral e filosófico, já que esta escolha desafia as preconcepções deste último.Sem contar que a possibilidade de escolha entre as interações(o que faz a história do jogo obter um sentido próprio para cada um que joga), porém a escolha das consequencias nem sempre estão sobre controle.Esse tipo de reflexão através da interatividade é algo que só o veículo midiático dos jogos (e em alguma situações, o teatro e as artes eletrônicas) pode alcançar.È uma pena que a nossa imatura (mas economicamente relevante) indústria não se dê conta de todo o potencial disso.


Mas enquanto eu estou limpando o pedestal intocável onde eu vou depositar esse jogo daqui a pouco, é hora de lembrar que ele está longe de ser uma experiência irretocavelmente perfeita, já que a maior parte das etapas de combate são meio capengas.No começo do jogo, as batalhas são meio arrastadas, pois parece que os personagens e os inimigos demoram muito para efetivamente causar dano uns nos outros.Conforme o jogo avança, o problema se torna outro; os inimigos sempre parecem muito mais fortes (e na maioria das vezes realmente são) do que o seu grupo, causando algumas batalhas serem sovas repetitivas e frustrantes.È possível pular a maioria das batalhas do jogo escolhendo algumas alternativa certas de diálogo ou simplesmente fugindo desabaladamente dos inimigos(o que gera uma chateação extra, pois ás vezes os cenários são muitos largos, e clicar num ponto distante do mapa pode fazer seus personagens ficarem presos em outro ponto no caminho).O problema é que em algumas situações o combate é praticamente inevitável, sem contar que no terço final do jogo, os combates começam a ficar mais frequentes e intensos, o que complica as coisas se os seus personagens não estão suficientemente fortes.Tendo em vista também que o jogo não segue a rota tradicional do ganho de experiência, pois fazer quests e recobrar lembranças rendem bem mais experiência que chacinar monstros, e as armas e equipamentos realmente bons são raramente comprados, e sim encontrados, o que coloca o combate do jogo numa posição meio deslocada, principalmente por que o texto é a estrela do jogo.È claro que existe a opção de abaixar um pouco a dificuldade do jogo, mas aí onde fica a minha honra???


Mas existe outro problema que eu não sei se é tão imediato quando este último, mas acaba afetando o jogo á longo prazo: é o excesso de fé que os designers puseram na teoria do caos em ajudar o jogador, somado á predisposição do próprio jogo de ferrar este último.Explica-se:itens e habilidades importantes para o prosseguimento do jogo nem sempre aparecem em alto relevo, e se o jogador por um acaso não explorar direito um determinado cenário, ou atingir determinado nível de um atributo, ou falar com o personagem correto, ele pode se ver irremediavelmente empacado, pois vai acabar não encontrando esses elementos essenciais.Por outro lado, escolher opções erradas podem fazer com que, por exemplo, todo um cenário se revolte contra você, o que nem sempre é bom, visto que o combate, como dito, é meio tosco, e alguns desses personagens que podiam lhe dar informações valiosas agora querem o seu couro porque você xingou a mãe do líder deles.Outro empecilho é que alguns enigmas são bem obtusos (o que aproxima o jogo um pouco dos adventures antigos) e a solução para estes á vezes vem de uma quest que o jogador não fazia idéia de que estava conectada á esses eventos.As soluções muitas vezes estão escondidas bem nos cantinhos mesmo; por exemplo, é fácil, fácil para quem está passando pela primeira vez no jogo não encontrar dois personagens do grupo simplesmente porque chegar até eles demanda sequencias de métodos obscuros demais.Isso acaba por forçar o jogador á procurar por um guia (ou walkthorugh, ou detonado) para ajudá-lo a se orientar, o que neste jogo é um verdadeiro pecado, pois isso essencialmente arruína a surpresa das várias das possibilidades que o jogo tem a oferecer (e eu estou dizendo isso porque eu -obviamente- tive de usar um desses).


Apesar dos pesares, Planescape tem uma característica que definitivamente me chamou a atenção, e que pode servir como redentora do jogo para os mais pacientes.O jogo todo tem uma narrativa e uma estruturação de jogabilidade, que se constrói em volta de um tema, exemplificado pela pergunta aterradora da bruxa malvada Ravel Puzzlewell, uma personagem essencial para a trama.Sendo um imortal, o personagem (e por extensão, o jogador), está supostamente livre de qualquer julgamento moral.Porém, o soberbo final do jogo atesta que não é sempre assim.O motivo pelo qual o Nameless One se tornou imortal é tão dolorosamente humano que é impossível não se identificar com ele, e o final demonstra que nem sempre podemos fugir do nosso destino.O que podemos fazer sim é lutar com todas as forças pelo que acreditamos; mesmo que fracassemos no final, teremos orgulho de termos pelo menos lutado.


Bom, vamos ás considerações finais; por mais que eu tenha gostado deste jogo, eu me encontro numa posição difícil de recomendá-lo para alguém, visto que o excesso de texto e a fluxo de jogo meio mal planejado podem afastar os jogadores menos dedicados.Porém, é um jogo com qualidades artísticas invejáveis, portanto se você for um fã de RPGs de mesa ou um gamer culto e esnobe, este é uma boa pedida.Infelizmente, esses é mais um (sim, mais um) jogo que eu analiso que foi um relativo fracasso comercial, e hoje é bastante desconhecido (como muitos jogos que eu gosto, por sinal- e por falar nessa lista, Planescape:Torment é um dos dois jogos maravilhosos que eu mencionei que estava jogando á época; o outro envolve um elfo de roupas verdes e uma certa princesa do crepúsculo).È lógico que com aquela capa feia pra diabo não ia vender mesmo, mas mesmo assim, Planescape tem uma certa apreciação tardia, sendo, por exemplo, indicado no Hall da Fama dos Games do site Gamespot e ficando em na posição 71 na prestigiosa lista dos melhores jogos de todos os tempos do site IGN (a frente de jogos como, ahem, Final Fantasy 7).Um feito simples para um imortal esquisitão e seus companheiros destrambelhados.Mas no final, resta apenas uma pergunta:


"O que pode mudar a natureza de um homem?"

5 comentários:

Anônimo disse...

ainda quero os posts que você me prometeu. humpft.
maaas...
sério, cara, teu blog me faz pensar em como inventam jogos com personagens bizarros. mas talvez seja só sua forma de escrever que torne-os bizarros (considere isso um elogio.)...

Anônimo disse...

Só porque você disse que não tinha visita nenhuma, resolvi aparecer para te dar um oi. =]
E, sério, faça propaganda da gente, vai... *cara fofinha*

Unknown disse...

HL² inovou para epoca, mas se analisar o jogo em si, é um jogo genérico, clichê, sem nada d+

Anônimo disse...

rapaz...pense em um jogo difícil !!!
axei ele perfeito,msm com os problemas q vc citou,ñ chegaram a me incomodar.
aaa parabens pelo blog
atualmente,deixei de mao Torment(um dia eu recomeço esse maldito jogo q vicia pakas)e to jogando shadowman (pc)
tbm dificil,assustador e na msm (se não mais) medida pertubador,alias notei alguma semelhança entre estes 2 jogos citados...vai entender

Anônimo disse...

Muito legal a análise. Parabéns pelo blog.